Crítica Teatral de “Farnese de saudade”

– UMA INSTALAÇÃO CÊNICA DE TEATRALIDADE IMACULADA, EM COMUNHÃO COM O MAR, CAUSANDO UMA REAÇÃO FÍSICO/EMOCIONAL. COMUNGANDO COM A ARTE.

Em cartaz, “FARNESE DE SAUDADE_, no aconchegante Teatro Poeirinha, Botafogo.

Com direção de CELINA SODRÉ, o espetáculo-instalação tem dramaturgia, atuação e cenário do ator mineiro VANDRÉ SILVEIRA.

Um monólogo premiado, dissertando e levando à cena as impressões físicas/emocionais do artista plástico mineiro, muito reconhecido em sua época, lamentavelmente, apagado e retirado do nosso presente contexto histórico cultural.

A instalação cênica/cenário, conta com peças e objetos do universo farnesiano, garimpados entre “lixos” descartáveis, durante dois anos nas areias das praias de Botafogo e Flamengo, em antiquários, e na feira da praça XV, locais que fizeram parte da trajetória artística/espiritual de FARNESE DE ANDRADE no Rio de janeiro.

Suas obras são abarrotadas, apinhadas de sentimento e delicadeza.
Há 70 anos FARNESE chegava ao Rio de janeiro, nascido em Araguari, Minas Gerais, estabelecendo uma forte ligação com o mar, gerando um sentimento “oceânico” que influência sua obra e sua cura.

Devido suas crises de tuberculose o artista mineiro muda-se para cidade maravilhosa e entra em profunda conexão com o mar, atribuindo sua cura ao contato com às águas salgadas, imaculadas, e em comunhão com seu espírito.

Uma valiosa pesquisa exposta cenicamente estendida à magia dos oceanos e as divindades que ele acreditava, e aos seus ideais artísticos, desse homem/artista das artes plásticas.

O trabalho é um projeto autoral do também artista mineiro, o ator, VANDRÉ SILVEIRA, com o objetivo de abordar emocionalmente, com forte apelo religioso, na obra de FARNESE DE ANDRADE.

O monólogo instalação deu uma visibilidade merecida na cena teatral, à carreira de VANDRÉ, que foi indicado ao prêmio Shell pela criação do cenário do trabalho.

O premiado espetáculo foi idealizado por SILVEIRA como uma manifestação do artista plástico. VANDRÉ narra em primeira pessoa e se coloca como objeto-criatura de FARNESE, após 16 anos de sua morte.
Cinco anos de pesquisa dessa empreitada, feita por SILVEIRA, com aparentes acertos e resultados sólidos que nos enche os olhos.
Utilizando-se de caixas, imagens sacras, gamelas(espécie de vasilha de ferro ou barro), bonecos com alusão às crianças, uma parafernália de objetos, que ele transformava em arte, em meio a sua afetividade/reminiscências.

Destaque para a pintura usada (camisa e testa), por ANTÔNIO SODRÉ SCHREIBER, impactando visualmente. Uma pintura de um coração sangrando, que chora, nas costas, como se a vida não tivesse direção certa, na verdade não tem mesmo.

Uma produção bem conformada, lapidada, de minuciosos detalhes, de CAIO BUCKER e equipe.

A dramaturgia, feita também por SILVEIRA, a partir de entrevistas, manuscritos de FARNESE, do curta de OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO, dos poemas “Ismália” de ALPHONSUS GUIMARAENS, “Certeza” de FARNESE e “Poema” de PUSHKIN. Um texto não linear, meio desconectado, que não consegue ser tão sólido e impactante, diante da plasticidade/beleza visual, que se captura, no implacável cenário/instalação.

Uma dramaturgia oscilando entre a adoração pela mãe heroína, e uma certa repulsa ao pai de físico invejável, desejado pelas mulheres.
VANDRÉ SILVEIRA consegue edificar um cenário/instalação, ficando no puro teatral. Uma gaiola de ferro em formato de cruz, permeada nos quatro cantos por areia de praia, evocando sua paixão pelas águas de IEMANJÁ; presente na parte de trás, em meio a areia, como figura a abençoar sua caminhada de vida. Tocante aos olhos que alcançam e a vêem.

Um feito de grande inspiração, que nos faz “adorar” àquela prisão/gaiola/isolamento e proteção de ferro, onde está guardado uma fortuna em obras de arte, penduradas e dispostas em sua “prisão” pessoal, para enriquecer nossa cultura, que mais tarde é esquecida pela memória de um país ingrato. Tudo isso contribuindo para o espectador mergulhar nos pensamentos, na criação, nos devaneios artísticos de um gênio. Signos, metáforas de vida e viagem no mundo do artista, e consequentemente nos remetendo às nossas próprias lembranças e frustrações.

Um intérprete e uma atuação em primeira pessoa. VANDRÉ/FARNESE, dois em um, num esgar, gestos, com linguajar de fragmentos, buscando expor sua obra que reflete diretamente em nossa sensorialidade. Uma atuação de entrega, concentração, ânsia de ator, que o rendeu indicações a prêmios e muitos aplausos. Corpo intimista, porém, de presença apoderado. Voz grave, dicção perfeita, e empoderamento cênico dirigido com clareza por CELINA SODRÉ.

A direção de CELINA SODRÉ, com assistência de CONRADO NILO e TUINI BITENCOURT, é ordenada, emaranhada, numa poesia de fluente maestria. Um fluxo de acontecimentos de maneira didática e no caminho mais do que acertado.
 
Assinando também o figurino, CELINA SODRÉ, com simplicidade e austeridade num contexto interpretativo de grande significância.
RENATO MACHADO, mago da iluminação, impõe uma atmosfera onírica de expressão aguda. Permite que o ator, com suas próprias mãos, orientado por ele, dê luz, visibilidade a cada obra manuseada no desenlace das cenas. Uma luz minuciosa e desvendando o baú de tesouros.

O espetaculo-instalação/teatro, “FARNESE DE SAUDADE”, tem uma provocação que nos leva ao conhecimento, que estava velado, e nos foi generosamente oferecido. Instigante em cada detalhe, saindo das reminiscências, e entrando numa luz cultural retumbante.

Disse FARNESE DE ANDRADE: “O homem não censurado é um homem livre e tem mais possibilidade de ser feliz, pode expressar suas idéias e opiniões. O homem que se auto-censura, ou é censurado, é um castrado, sem possibilidades de evolução”.

É preciso exacerbar, avivar, dois momentos marcantes de “FARNESE DE SAUDADE”. No primeiro, FARNESE/VANDRÉ “aprisionado” em uma gaiola de ferro, entregue a própria sorte, evocando rituais sagrados, perturbado por uma queda em sua infância que causou amnésia e uma deficiência cerebral, como ele mesmo relata. Um homem se censurando, castrado, apenas com a possibilidade de criar suas obras-primas. E no segundo momento de evolução, redenção, liberdade, quando ele sai da gaiola de ferro, e vai ao encontro da cura, da verdadeira libertação, carnal e espiritual, nas areias das praias, dividindo seu mundo com espectador, interagindo, e com as bençãos de IEMANJÁ. 

VANDRÉ/FARNESE e o MAR.
Um trabalho/espetáculo com fluência, escoamento, organizado na visibilidade necessária.
UM HOMEM CENSURADO É UM SER CASTRADO.

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