Crítica Teatral de “Um Tartufo”

– O HUMOR FINO, NEGRO, CONTAGIANTE, NUMA CAPCIOSA COMÉDIA TÃO REAL, COM GRANDE PROFUNDIDADE PSICOLÓGICA.

Comédia do dramaturgo francês MOLIÈRE, está sendo levada à cena carioca no Teatro Poeirinha, pela Cia. Teatral Esplendor, que comemora seus 10 anos de empreitada cênica. 

Direção/encenação de Bruce Gomlevsky, com assistente; Luisa Espíndula.
Direção de produção esmerada de Luís Prado.

A tartufice/hipocrisia/dissimulação é a fonte que a Cia. Teatral bebe, em texto clássico/épico num desfiar de linguagem cômica de grande eloquência, dissertando com reverberação até os dias de hoje. Relações humanas que envolvem religião, com sua manipulação ferrenha, poder e ascensão social.

“Orgon, uma pessoa de destaque na sociedade francesa tem verdadeira adoração por Tartufo, um falso devoto, que com sua hipocrisia manipula a todos. Os demais membros da família(esposa, filha, filho, empregada), não acreditam e não gostam de Tartufo. Orgon convida Tartufo para morar em sua casa e esse passa a ser o seu mentor espiritual, e também concede à mão de sua filha a Tartufo, apesar de ela já ser noiva de outro. Enquanto isso Tartufo tenta seduzir a esposa de Orgon, episódio que é presenciado pelo seu filho. Quando este conta a seu pai o que viu, é deserdado, pois tem a coragem de caluniar uma pessoa séria e religiosa como Tartufo”.

A Cia. Esplendor experimenta um caminho não realista, tendo como foco primordial o trabalho do ator e suas possibilidades corporais, esgar/trejeitos gestuais, emoções, intuição sonora/musical, criando um trabalho coreografado, corpo como instrumento cênico, sem o uso da palavra/texto. Nesse caminho inspiram-se no método de STANISLAVSKY, estudando à peça pela prática das ações físicas.

A afluência das memórias pessoais dos atores também edifica o trabalho, numa interpretação não realista, porém, dando luz à teatralidade. O cinema mudo/Chaplin/mímica, foi o mote fundamental em confluência com o treinamento GROTOWSKANO.

A dramaturgia livremente inspirada em processo coletivo da Cia, com momentos preciosos de humor fino e negro, nos apresenta uma ousada criação cênica milimetricamente coreografada , construindo um feérico/deslumbrante ballet de repertório orquestrado pela música, de valor crucial ao trabalho, e pelos espasmos e profundidade psicológica das interpretações. Um trabalho singular do ator, diretor e música, reverberando coreograficamente num ballet cênico ilustrativo, vívido, usufruído cenicamente, como se regido por um grande maestro/direção, e sua orquestra. Nitidamente o texto nos toca através da acepção adquirida pela entrega corpo/emoção dos atores. Um linguajar cênico pervasivo/penetrante, pelas minúcias gestuais nos corpos dos intérpretes, em fluir musical de extrema sensibilidade.

A música original de BORUT KRZISNIK é o achado valiosíssimo que desenreda/apura/detalha os momentos cênicos, envolvido por um cenário prático, eficiente, bem manipulado, de Bel Lobo e Gomlevsky.

Figurino de Maria Duarte e Márcia Pitanga, conectado com o visagismo de Mona Magalhães, se corroboram, se enaltecem, em enorme abundância ao caracterizar à cena com beleza e verossímil à proposta dramatúrgica, em detalhes criativos vindo das contrações voluntárias e involuntárias dos músculos, e com delicioso humor.

A iluminação de Elisa Tandeta é uma “pequena” obra-prima desenhada para evidenciar o histriônico nas atuações e situações, elevando o espetáculo ao patamar a que ele se propõe. Uma sofisticação em favor de uma estrutura bem elaborada.

O que dizer das personalidades histriônicas de um elenco que chega ao “exagero” de gestos e emoções, porém, o “ridículo” destes “histriões”, para criar seus personagens, vem do fundo da alma, do talento, vocação, se transmutando em imponente teatralidade. Não há quem destacar, apenas temos que dar deferência, efusivos aplausos: Yasmin Gomlevsky, Gustavo Damaceno, Thiago Guerrante, Ricardo Lopes, Patrícia Callai, Nuaj Dele Fiol, Felipe de Barros, Gustavo Luz. BRAVO!

A direção/encenação do maestro obrador Bruce Gomlevsky é excêntrica em sua coragem diante de um clássico/épico de tamanha relevância. Bruce catapultou/projetou sua genialidade colocando- a em prática em favor do teatro. Seus atores terão vida cênica longa, por se doarem e acreditarem na credibilidade de Gomlevsky. Apostou no não realismo, na ausência da palavra e deu lugar à superação, imbuída da reflexão teatral.

“UM TARTUFO” tem uma profundidade psicológica que nos revela em pantomimas/mímicas, interpretações coreografadas em emoções, um grande ballet orquestrado, esmiuçado com teatralidade, recheado com a hipocrisia contemporânea, tão presente no aqui e agora. Num inusitado, pragmático e capcioso final, o samba se faz imperioso, coroando, e também como crítica social à nossa precária realidade.

A imersão da Cia. Esplendor não poderia ser mais oportuna, diante de um MOLIÈRE tão esmicuído/envolvido nos nossos tartufos atuais e esmagadores.

Que venham todos presenciar e se emocionar nessa linguagem teatral necessária.

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