UMA “MÚSICA” INTERMITENTE NAS VOZES INTERPRETATIVAS RUMO À DENÚNCIA, EM FÔLEGO E ÂNSIA PRESENCIAL.
Em cartaz no charmoso Teatro Ses-Tijuca, uma das dramaturgias da expoente britânica SARAH KANE.
Com direção/ encenação de César Augusto e assistência de João Bernardo Caldeira. Tradução de Laerte Mello. Com: Alexandre Galindo (produtor e idealizador), Elisa Barbato, também idealizadora, e os veteranos e respeitados Maria Adélia e Rogério Freitas.
SARAH KANE, bebê, se inspira, na “escuridão” e desenrolar humano pulsante, em carne viva, dos ícones da literatura; SAMUEL BECKETT e HAROLD PINTER.
Um evocar denunciando às mazelas interiores, embates e conflitos, em um olhar muito particular.
Falecida com apenas 28 anos, suicídio, a inglesa deixou um legado de “apenas” cinco peças, se tornando um dos principais nomes dramatúrgicos do final do séc. XX.
Em “CRAVE” quatro vozes, bem interpretadas, em amargor avultado, empoderado, jorram desejos, sexualidade, abusos de vários tipos, evocam lembranças que se interligam. Sugere uma gama de sensações e denúncias, libidos, modelos pré-estabelecidos, reverberados no expelir dos atores, envoltos de ansiedade, numa estrutura cênica considerável.
A autora inglesa é revestida de emoção numa ânsia visível, “gritos”, sussurros, para que enxerguemos à barbárie. Usa a voz/ texto como seu instrumento, sua arma, potencializando sua necessidade de ser ouvida, querendo renascer.
O espetáculo em sua direção/ encenação de César Augusto, comunga fortemente com o universo particular da autora. Um caminho num apontar que encontra e fala com verdade em cenas fragmentadas, atingindo e conquistando o espectador. Alinha-se perfeitamente ao trabalho corporal de Toni Rodrigues, em plena conexão no desfrute corpo e voz, intimista e belo, feito pelas atuações atentas. Encenação em estrutura coreografada, bem resolvida.
César Augusto dialoga com SARAH KANE numa exposição bem efetiva e marcada, ritmo envolvente, em cenas que dão luz às vozes, e ao vulnerável do ser humano.
Tradução fluente, lado a lado à direção nas mãos de Laerte Mello. Sem excessos, para nos apegarmos às cenas.
Cenário limpo na caixa cênica, também de César Augusto, meio que “sufocante” para expurgar à sujidade/ imundice, à ânsia, dando lugar à voz, ao texto, aos atores, à pontual e espressiva iluminação de Diego Diener, e a trilha sonora em enigma encorajador recorrente à proposta, assinada por André Poyart.
Tiago Cardozo nos dá um figurino elegante, neutro/ escuro, fazendo contraponto no branco da jovem atriz, como se buscasse a pureza, à paz, ausente no texto.
As atuações reverberadas nas vozes, muito bem matizadas, cheias de nuances com corpos marcados e direcionados propositalmente em alguma apatia presente, tendo na força interior uma destemida e significativa expressão. Pensamentos e atos “raivosos e odiosos” nos respeitados trabalhos de:
Alexandre Galindo, Elisa Barbato, Maria Adélia e Rogério Freitas. Atores que se entregam com dedicação à liberdade da encenação e ao comando alentado do diretor.
“CRAVE OU ÂNSIA” é um espetáculo que tem fragmentos de cenas denunciantes como um raio x humano na ordem e desordem de escrita repleta de possibilidades com pitadas de humor negro. Corpos colocados e bem comandados, obedecendo vozes ligadas à abusos psicológicos e violências veladas ou explícitas.
A subjetividade na proposta nos deixa atentos aos trejeitos, no buscar explícito cruel da dramaturga empoderada.
Uma leitura cênica inquieta para nos obrigar a pensar no remoer das palavras.
Um texto considerado dos mais amenos da britânica, numa escrita de prufundezas emocionais reais em amargor, deixando qualquer sociedade perplexa, numa linguagem plural, polissêmica.
Vozes interpretadas num cuidado precioso, envolto de signos teatrais em qualidade “música” intermitente de ritmo e compasso mais do que necessário.
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Lucia regina Ribeiro
Eu assisti à estreia de Crave. A peça é maravilhosa. Esta excelente crítica é mais que merecida.