A ÉTICA OSCILANTE, INSTÁVEL, CORROMPIDA, TRATADA EM VISÍVEL DOAÇÃO CÊNICA, COM O PODER DA LEVEZA, DELICADEZA, NUMA NECESSÁRIA IMERSÃO.
Os artistas gaúchos com nomes respeitados no teatro de animação contemporâneo, Carolina Garcia e Paulo Balardim, aliados à companhia canadense, trazem à cena carioca a leveza imprevisível e a delicadeza estonteante do espetáculo: “HABITE-ME”
Em cartaz no Sesc Copacabana, apenas até 18/08, de quinta à domingo.
Pesquisa e atuação: Carolina Garcia, com direção e dramaturgia de Paulo Balardim.
Assessoria com extremo cuidado de Mônica Riani.
É preciso destacar para maior entendimento do espetáculo um trecho da obra “ELEGIA 1”, contida no release.
Um dos mais importantes poetas da língua alemã do século XX:
“É ESTRANHO NÃO HABITAR MAIS A TERRA, NÃO MAIS PRATICAR HÁBITOS AINDA MAL ADQUIRIDOS, NÃO DAR SENTIDO DO FUTURO HUMANO; O QUE SE ERA, NÃO SER MAIS, E ATÉ O PRÓPRIO NOME DEIXAR DE LADO COMO UM BRINQUEDO QUEBRADO. ESTRANHO, NÃO DESEJAR MAIS OS DESEJOS. ESTRANHO, VER TUDO O QUE SE ENCADEAVA ESVOAÇAR SOLTO NO ESPAÇO. E ESTAR MORTO É PENOSO E CHEIO DE RECUPERAÇÕES, ATÉ QUE LENTAMENTE SE DIVIDE UM POUCO DA ETERNIDADE. OS ANJOS (DIZEM) NÃO SABERIAM MUITAS VEZES SE CAMINHAM ENTRE VIVOS OU MORTOS. A CORRENTEZA ETERNA ARREBATA ATRAVÉS DE AMBOS OS REINOS TODAS AS IDADES SEMPRE CONSIGO E SEU RUMOR AS SOBREPUJA EM AMBOS. COMO SUPORTAR, COMO SALVAR O VISÍVEL, SENÃO FAZENDO DELE A LINGUAGEM DA AUSÊNCIA, DO INVISÍVEL? AS COISAS ESTÃO LONGE DE SER TODAS TÃO TANGÍVEIS E DIZÍVEIS QUANTO SE NOS PRETENDERIA FAZER CRER; A MAIOR PARTE DOS ACONTECIMENTOS É INEXPRIMÍVEL E OCORRE NUM ESPAÇO EM QUE NENHUMA PALAVRA NUNCA PISOU”
(RAINER MARIA RILKE – EXTRATOS DA ELEGIA 1).
Com uma narrativa bem apoiada na música, uma trilha sonora simplificada em sofisticação, nas mãos de Tuur Florizoone, à cena caminha com máscaras, bonecos e movimentações sólidas pelo corpo e alma da atriz. Gestos minuciosos de aparente pesquisa aprofundada e aguda.
Oniricamente engajado e amalgamado no poema “ELEGIA 1”, citado acima, uma poesia que contempla e que detalha a vida e a morte, atemporal.
O imprevisível, a juventude que se ganha e se perde, os cuidados e descuidados que atropelamos.
Idosos envoltos de fragilidade e sensibilidade, singulares em bonecos inanimados que nos representam na distopia que nos é presente.
Um casal de idosos que encontram o valor duradouro do amor, mesmo diante da brevidade da vida. Baluartes que se tornam densos diante da imprevisibilidade.
O inabitual tendo que ser habitual, envolto numa indumentária de expressiva beleza por Cris Lisot, em meio às oscilações e às instabilidades.
O assombro do inevitável, numa fisicalidade muito bem medida por Márcia Pinheiro e Laurence Castonguay, em desassossegos e decisões com suas consequências certeiras.
A liberdade que não se mostra tão livre. Medos e dúvidas indubitáveis e corriqueiras. A perda?
O laço que o feminino/mulher sempre nos proporciona, em sensações de perdas previsíveis se perpetuando em criações de bonecos e máscaras permeando o encantamento entre homem e mulher na interação de sensações da vida e da morte que povoou o fazer artístico de Emile Racine.
A vida lutada, suada, inspirando e fortalecendo corpos que não decidem mais nada.
O impacto e o etéreo criado na proposta cenográfica, nos faz flutuar, viver e morrer a cada segundo, ser jovem e desgastado pelo tempo; no cenário de Élcio Rossini e Paulo Balardim. O insuflar da vida e o esvaziar da morte trazidos pelo efêmero, em grandes “almofadões/pessoas”, cheios e vazios, no abrir e fechar dos olhos do espectador, pela transitoriedade das coisas/tempo, pela elegia da melancolia que penetra a vida, porém, insulfla as esperanças de querer viver. Esperanças alentadas em insigne revelador e pontual sempre com a presença da arte, de um homem iluminador chamado Renato Machado.
Com direção em caminho escatológico, relacionada com o final dos tempos, vida e morte, trata à cena esmiuçando a trajetória percorrida pela atriz, dando- lhe suporte imprescindível a esse trabalho de nível de reflexão sem nenhuma obscuridade. Paulo Balardim é a sensibilidade necessária que o habitar, habitar-se e o habitar- me, desfruta no lirismo encontrado.
A atriz Carolina Garcia conduz a linda narrativa musical, manipula bonecos, usa máscaras e muitos adereços para nos apresentar essa poesia de melancólica linguagem nada obscura.
Os elementos de cena são interdisciplinares, levando ao público sentimentos e sensações da efemeridade e a total inconstância do corpo imbuído de suas marcas e atravessamentos.
Carolina Garcia é a atitude, leveza e delicadeza cênica, sem perder à presença de atriz que nos encanta. Se coloca na elegia do poema para nos conduzir à poderosa e insuflada transmutação da vida que insiste a nos arrefecer.
O ponto de partida foi explorar interações para não deixar abater, esmorecer, diante da solidão e do desânimo causado pela “perda”.
Diz Carolina:
“Habitar o inanimado e me deixar habitar por ele”.
” Um novo modo de perceber o outro, através da tolerância e da empatia”. É exatamente isso que necessitamos.
O espetáculo nos dá uma respiração peculiar, um definir com clareza os assuntos. Um apaixonadíssimo poema que comunga com a morte, e renasce na busca pela vida que nos pertence, na ética da existência.
A verve de “HABITE-ME” se coloca no instável da emoção, o vulnerável, o sem controle do corpo incorporado no humano, através de bonecos e máscaras de simbolismos indeléveis. O inanimado com incríveis, tocantes sensorialidades que deviam pertencer e ficar em nós, corpos recheados de carnes, sejam elas enrugadas ou “imprestáveis”, disformes em suas diferenças e num constante estado de transformação, transcender, se possível.
Somos efêmeros, invisíveis, corroídos quando não doamos, na verdade, mesmo quando doamos.
Maleáveis e incomuns quando nos permitimos. Lindos! Cheios de vida, quando nos permitimos.
Nossa ética, nossa natureza, deveria sempre está impregnada de compaixão, respeito, amor, para que o mundo não nos escorra pelos dedos, quando o embate com nossa vulnerabilidade aconteça, ou seja, no nosso dia a dia.
Sucintamente, é isso que enxergamos e surpreende ao presenciar o espetáculo, onde os bonecos, máscaras, conseguem ser mais delicados, tratáveis e necessários, como nós humanos deveríamos ser; isso só a arte pode nos revelar, doar, em sua imensa generosidade.
Um espetáculo de arte nos ensinando que a vida tem poderes, mesmo em seus momentos mais cruéis.
“ESTRANHO, NÃO DESEJAR MAIS OS DESEJOS”.
Como já disse:
Um apaixonadíssimo poema que comunga com a morte, e renasce na imperativa busca pela vida que nos pertence. A ética da existência.
“HABITE-ME é uma obra imagética, que através do abstrato que é palpável, nos dá a verdadeira dimensão de uma ética que tem que ser cultuada e colocada em prática, mesmo com a morte e a brevidade das coisas nos desafiando.
Espetáculo NECESSÁRIO!
1 Comment
Luiz Carlos Cirino
Parabéns pela crítica, Francis! Já quero assistir!