Espetáculo: “ANDREA DANTAS EM O DIABO EM MRS. DAVIS”.
Andrea Dantas insuportavelmente necessária e “incorporada” em BETTE DAVIS. “Que culpa eu tenho de ser brilhante”. “Para gostar de mim é preciso gostar da febre, da faca, do fogo, da fúria, da gente maior que a vida, de cinema”.
BETTE DAVIS reinava em absoluto rigor, vigor mental e físico e austera. Sem olhar para trás. Convicta de seu poderio interpretativo precursor.
A peça narra os 30 anos da morte de DAVIS, e os 40 anos de carreira de Andréa Dantas. Monólogo inspirado nas palestras “Onde Woman Shows”, realizados em 1980, quando afastada do cinema. Cenicamente torna-se conhecido uma vida de estrelato, com medos, inseguranças pessoais e dependencias internas da mulher por trás das lentes. Recompõe-se pensamentos e memórias de suas reminiscências.
O espetáculo se desenrola na impetuosidade, numa febre não preocupante, pois tem na arte do diálogo, um argumentar fundamentado e coeso. Um delicioso discorrer da cinematografia, numa época em potência austera disseminada pela grande atriz.
A fluidez em toda à trama é tranquila e ao mesmo tempo maquiavélica, o que confere ao trabalho um jogo lúdico, envolvente, ajustado, de habilidade cuidadosa na perspicácia textual.
Em cena a síntese em autoficção de uma trajetória numa narrativa mergulhada em pesquisa sólida de conhecimentos e atitudes desembaraçadas. Um trabalho cênico sem nenhuma platitude, ou seja, o não medíocre, nada inexpressivo.
Enfim, uma morosidade tênue, que poderia ser desastroso, porém, ao contrário disso, irrefutável em precisão. Um trabalho insubmergível. Um visagismo coerente, expressivo de Walter do Valle.
Dantas e San’tangelo cuidam da ambientação cênica na simplicidade, em paletas de cores que conferem a personalidade de BETTE DAVIS no intimista espaço.
Hugo Charret, cria um desenho de luz apropriado à pequena sala, dando respaldo, sustentáculo, à luz própria da atriz, evidenciando uma indumentária por Marcelo Marques, de etérea elegância, na simplicidade, no glamour que lhe é peculiar em seus figurinos.
Um figurino que remete ao de BETTE DAVIS, pontuado por um broche que “dóe” aos olhos na sua delicadeza e no seu luxo. Dá a figura de Andréa uma ostensiva aparência.
“Direcionar” os passos de uma atriz do porte de Dantas, é preciso ter uma inteligência libertária, dando à ela, pontuações para que ela fique na segurança certa. Isso é perfeitamente percebido na direção de Aloísio de Abreu.
Um texto crítico, ácido, em primeira pessoa, onde Jaú San’tangelo, em estreita pesquisa, nos dá guarida para a percepção do espectador, em loqual e coloquial escrita para entendimento imediato.
Um esqueleto cênico esboçado, infiltrado no pessoal da mulher, da atriz, nos dando um compêndio contextual em descrição, que nos permite odiar e ao mesmo tempo amar essa espirituosa história em deliciados humores rascantes.
Expõe o suficiente da figura da mãe, sua extrema e total importância para à atriz ser e chegar ao estrelato. Uma mãe em distopia, opressora, frustrada por não ter sido a grande “malvada” do filme, porém, vivendo como rainha na vida real, ao tornar à filha uma dependente de seus devaneios, oscilações e instabilidades emocionais.
San’tangelo nos mostra essa relação quase mutuofágica, um devorar mútuo de corpo, alma e energias, entre as duas, para sobreviverem. Jaú San’tangelo descortina o pessoal da atriz, numa possante desenvoltura. Laureando os 40 anos de carreira de Dantas, que nos favorece. Andrea Dantas aceita esse grande desafio, que só poderia ser interpretado por uma verdadeira atriz.
“Incorpora” uma mulher que sobreviveu a um câncer e a quatro casamentos conturbados, com um pai nulo em sua vida. Uma mulher afetada de embates interior e exterior, sem perder à fúria.
Como ela mesma diz: “Eu não sou nenhum anjo, como vocês também não devem ser”.
Dantas reuniu sua vocação, talento, técnica e experiência de 40 anos e nos presenteia com uma BETTE DAVIS anojada, árdega, maledicente, picante, insuportavelmente necessária para a cena teatral.
Sempre se apoiando num humor delicioso, crítico, de fina ironia, para tornar conhecido as escolhas profissionais inabituais, do comportamento pouco amigável de DAVIS.
Andrea Dantas revela em cena a mulher inidônea, que era estupenda atriz, que preferia às vilãs, enquanto as outras atrizes de aparência escultural, dispensavam. Com isso conquistou dois Oscars(“Perigosa” e o filme “Jezebel”), e foi indicada a mais onze troféus. Ufa!!! Que talento, que vocação.
A intérprete de BETTE DAVIS coloca um expressionismo denso em atitudes aparentemente tranquilas, com profundidade técnica e vocacional.A atriz num mínimo espaço não arrefece, se intromete em olhares com o público e dá seu recado indizível.
Uma postura jocosa, irônica, belicosa, espalhando o glamour de DAVIS/DANTAS com sua aristocracia presencial. Bravíssimo!!!
Algumas pérolas impossíveis de não serem citadas:
Ruthie, sua mãe, dizia: “Pássaros bicam a melhor fruta”.
BETTE DAVIS dizia: “O sucesso é muito mais perigoso e corruptor que o fracasso”. “Quando vi, já tinha me tornado uma pessoa insuportável”. “Que culpa tenho eu de ser brilhante”.
Por tudo isso, só indo conferir esse privilegiado momento teatral.
“ANDRE DANTAS EM O DIABO EM MRS. DAVIS” é insuportavelmente necessário.
2 Comments
Regina Cavalcanti
Adorei essa resenha! Fiquei super interessada!
Gizela
Que crítica maravilhosa!