UM DESTRINCHAR CÊNICO, NUM NÓ QUE NÃO DESATA PELAS MÃOS DA TORTURA E USURPAÇÃO.
Em configuração cênica de partitura incomum, “Peça roda de conversa”, aporta no delicioso Sesc Copacabana, “PROVA DE AMOR”, com dramaturgia de Pedro Kosovski e Manuela Llerena.
Direção: Pedro Kosovski e assistência de Diego Ávila.
Produção: Aline Mohamad, Ana Raquel e Heder Braga.
Assessoria: Gisele Rocha e Bruno Morais.
Sexta à domingo, 18 horas. Até 24/11.
“É sobre uma atriz que investiga a juventude de seu pai, torturado pelos militares por distribuir panfletos subversivos”.
“Os jogos partem de elementos reais, compartilhados com o público, como um mandado de prisão emitido pelo Exército nos anos de 1970. Um mimeógrafo com o qual eram impressos os panfletos distribuídos pelo pai da atriz. Um advogado que participa via vídeo para tirar dúvidas legais. Tem como pano de fundo a ditadura militar e suas tentativas de silenciamento”.
Familiar e bem atual, ou não?
Importante citar alguns trechos contidos no “programa-release”:
“Nota da dramaturgia”:
“Essa peça não será montada. E não deve ser contestado. Seja pelas leis de incentivo e o passo tímido que não conseguimos dar em relação a democratização da arte, seja pela censura prévia. Seja pela total desorientação de um corpo no deserto, seja pelos mortos da guerra e a vergonha. Pela perseguição do Estado, seja pela urgente proteção e demarcação das terras indígenas e quilombolas. Seja pela subserviência. Pela nossa separação de nossa própria força. Seja pelo fanatismo religioso e truculência. Seja pelo ataque aos direitos humanos”.
O espetáculo é intitulado “inexistente”, porém, perfurante, e nos “obriga” a pensar, convida a participar, nos esboça, no intuito de desvelar, os tempos em carne viva que nos atravessa, num volume de autoritarismo ilota/excludente.
Um desfiar, e uma presencial experiência em conjunto, diante dos ataques e torturas, nos usurpando nossa dignidade, forças, e querendo nos reduzir à vermes sem reflexão.
“A peça roda de conversa” nos dá um espaço de liberdade que que só a arte possui para evoluirmos, nos colocando em ânsia de intervir querendo solucionar, fazer uma catarse, propagar a resiliência, o amor; PROVA DE AMOR.
Um espetáculo fábula poética, em insólita configuração cênica e arrebatamento psicológico emocional.
Dissemina a tomada de consciência onde estamos vendo tudo falir, ameaçados dia e noite para perdermos nossa maior arma: auto-estima e senso crítico.
Um trabalho de total reconexão com o espectador, nos injetando a força narrável para sairmos do servilismo, e assim enxergarmos que não devemos cumprir regras ou ordens de modo humilhante.
Atores em cena aguerridos tentando nos tirar dessa zona de des(conforto), numa cidade, país, em irrefreáveis atitudes de distopia/opressão.
Os acontecimentos na cena são ditos ou não ditos, pairando em metáforas no ar, onde a solidão do artista/espectador é o coringa potente em afluência, reunindo forças para não se entregar. Um jogo persecutório artístico interativo, que persegue em busca de amparo, do pensar, para não permanecer imutável.
No meu olhar um trabalho iconoclasta no sentido de “quebrar imagens”, atitudes opressoras, condições de vida distópicas.
Nada é obscuro, num desafio ousado, entrelaçado ao público, e a cena teatral com entrega competente dos atores.
Um espetáculo que sem dúvida a cada dia será diferente, com surpresas, pela ferrenha e necessária imersão do espectador pensante, que vai se jogar na busca abissal de dignidade e auto-estima, senso crítico, lado a lado com os atores.
É essa feérica ousadia que faz dessa cena, o que eles chamam de “inexistente”, que para mim é o esqueleto da coragem em competência.
Um momento teatral dialógico, conflituoso, com seu emaranhado de emoções, árdega e ao mesmo tempo prazerosa, na roda de conversa proposital e imprevisível no intervir inesperado e provocado pelos atores.
Um nó que não desata se ficarmos inertes diante desse espúrio que se tornou habitual.
O urdimento técnico, em seus signos Teatrais, sublinha, faz sobressair, e converge com retidão na encenação, pelos seus assertivos e respeitados profissionais.
Dá o perfeito sustentáculo à “peça roda de conversa”, onde a narrativa é a protagonista absoluta.
São eles: Direção musical (Felipe Storino), cenário (Júlia Daccache), figurinos (Ticiana Passos), iluminação (Paulo Denizot) e colaboração artística (Márcia Rubin).
Manuela Llerena e Pedro Kosovski criam uma dramaturgia em torno da competência presencial dos atores, na pesquisa feita em residências artísticas, e na interação com o público. Norteiam a oratória em cena, amalgamados na lisura de suas pesquisas e experiências. Ousados e artistas engajados.
O aporte de direção de Pedro Kosovski é calcado na liberdade com plena identidade cênica construída pelos intérpretes. Liberdade essa que sem querer querendo, é uma das palavras-chave, que se quer buscar na encenação, na vida. Liberdade que estamos lutando para recuperar.
A criação e atuação é artesanal, expressiva, entranhada na proposta, e profunda nas manifestações interiores.
Todos os intérpretes num caminho em linguagem corporal e de doação; Ana Lú Nepomuceno, Eduardo Ibraim, Jojo Rodrigues, Manuela Llerena, Matheus Macena e Raquel Villar.
O desembaraçar de “PROVA DE AMOR” é e será uma surpresa a cada espetáculo, porém, não faltará arte na veia.Como já disse, repito:
“PROVA DE AMOR” é um DESTRINCHAR cênico, ousado, corajoso, talentoso, num nó que não desata, ou não querem desatar, nas mãos da tortura e usurpação.
ESPETÁCULO NECESSÁRIO!