TeatroCrítica: Por Francis Fachetti.
“cícero”– A Anarquia de um Corpo Santo.
(Texto e Atuação: Samir Murad).
Direção: Danial Dias Da Silva.
No capitanear de Samir Murad, a Cia. Teatral Cambaleei, mas não caí… efetiva mais uma empreitada teatral encerrando seu projeto de trilogia – trazendo o mais santo brasileiro não canonizado.
Esse “descaminho” preparado pelo universo; essa mística luta encharcada, imerso e ensopada de milagres, disputas, políticas, guerras, crueldade, complementando e aclarando o principal nesse homem: Padre Cícero – com sua idiossincrasia irretocável, que faz esse indivíduo reagir de maneira pessoal à influência de agentes exteriores.
Um peculiar comportamento que iria desviar (se) para sempre a trajetória humana e sóciocultural nos padrões, moralidades, crenças, visões de mundo – o sagrado ou profano?
O diretor desse monólogo/solo Daniel Dias Da Silva diz:
Mais do que reproduzir o Padre Cícero, e dar respostas aos enigmas que ainda orbitam a sua história, buscamos revelar suas distintas facetas: O guia espiritual de um povo sofrido, o político visionário, o homem por trás do mito – com suas dúvidas, falhas e fraquezas. Tentamos jogar um pouco de luz nos fatos e personagens que o ajudaram a tornar-se o mais importante ícone religioso do Brasil, capaz de abalar e ameaçar as estruturas da própria igreja”.
Dentro da narrativa de Daniel traçamos um paralelo indiscultível nos nossos sombrios momentos que nos desafia e nos apequena; esse usurpar que estamos vivendo em todas as esferas da sociedade, em nossas vidas…
O necessário e urgente nesse solo é como foi ilustrado toda essa narrativa aguçando o senso crítico do espectador.
O espetáculo se confugura e tenta definir na visão idealizada e autoral de Samir Murad os acontecimentos e personas que levaram Cícero a ser um diferencial no universo religioso, político, pessoal…
Essa configuração se ilustra em cena nas experiências trilhadas pelo ator e autor – Murad – com especificidades arduamente dedicadas e estudadas por esse também diferenciado artista.
Murad evolui num espetáculo e o constroe a partir de sua trilogia, que com esse solo virou tetralogia – tendo o emblemático mestre Antonin Artaud como espelho em suas pesquisas abissais em torno dos parâmetros estabelecidos por esse monstro sagrado das artes. Encolera-se no guião de Artaud, colocando seus ensinamentos na cena de corpo e alma.
Como o próprio Samir Murad diz:
“Cícero surge como um baluarte de resistência contra a ignorância e hipocrisia que se abateram sobre nós – por isso esse trabalho fala de finitude e morte, buscando as entrelinhas de Artaud”.
Murad faz um amálgama da arte japonesa Butoh – dança inspirada no expressionismo, movimentos de vanguarda, surrealismo, construtivismo; conhecida como “Dança da Escuridão” -, também com o estudo do Livro Tibetano dos mortos, e com o precioso que há nos treinamentos de Antonin Artaud. Aliando todas essas riquezas culturais consegue levar a cena teatral um espetáculo de extremo necessário em sua construção e potência.
O espetáculo aposta em liberdades dramáticas, onde o ator/personagem Cícero se coloca como um “recitador” de poesias épicas, como um poeta popular, cantor, passando por todos os cantos sintetizando os acentos mais sensíveis a seu povo; ou seja, nesse trabalho, destrincha a sua própria vida tentando entender e se fazer entendido.
Um espetáculo questionador, ilustrativo e de uma coragem/ousadia que só os fortes assumem essa peleja artística.
Cenário e figurino de Karlla de Luca em perfeita correção corroborando com a proposta, seguida de uma discreta e flexível trilha sonora de André Poyart.
Wallace Furtado( Russinho), imprimi uma iluminação com simplicidade, valorizando, e muito, o desenlace cênico num belo arremate do espetáculo.
Daniel Dias Da silva em sua diplomacia homem/artista, conduz a direção artística nos moldes da idealização autoral e atoral, deixando aparente seu envolvimento na precisa acuidade com o transcorrer cênico. Um processar de parceria e harmonia exitosa.
Concepção, texto e atuação de Samir Murad em plena convergência com sua carreira de entrega, pesquisas e estudos aprofundados.
Em relação ao texto, minha observação e olhar atento a esse poderoso retórico, se faz necessário mais “entendimento” com o público; texto esse de Murad – talvez torná-lo mais coloquial em seus recortes, ao “recitar” as trajetórias conflituosas de Cícero, trazendo-o mais perto e facilitando maior interesse na acepção do espectador. Como aclarar essa vida do maior santo brasileiro não canoniozado num discorrer mais compreendido conseguindo entender, entreter e assimilar com mais empatia? Vale analisar com carinho.
O intérprete Samir Murad é um estudioso do corpo e da alma no trabalho atoral. Percebe-se sua força cênica, a excelência enquanto ator – colocando seu corpo em pesquisa e sua entrega ao ofício teatral com exuberante e ostensivas possibilidades para as artes. Um ator com verdade cênica e uma potência que faz desse espetáculo um diferencial pelo talento, vocação e coragem.
Sua pesquisa conectando Butoh, o Livro Tibetano dos Mortos e Antonin Artaud é artesanal, visceral, visível nessa empreitada.
A riqueza e os mistérios valiosos advinda da formação cultural da trajetória de Cícero, faz dessa cena teatral uma força pensadora e praticante através da pesquisa, encenação, no submergir desse embate real e fictício, cheio de paradigmas, onde o tempo e as verdades se conectam abrindo os caminhos para novas realidades.
Por Francis Fachetti – Ator, diretor de movimento, bailarino, coreógrafo, dançarino de flamenco e crítico teatral e de dança.
Instagram: @f.fachetti
@dradoescaiomonologo
E-mail: f.fachetti@hotmail.com
Samir Murad.
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Foto: Francis Fachetti.
“Cícero” – A Anarquia de um Corpo Santo.
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Foto: Francis fachetti.