Inédita: Entrevista NECESSÁRIA – Daniel Herz: Diretor Teatral.

 

INÉDITA! Daniel Herz – Diretor Teatral.

 

 

O Projeto “Entrevistas NECESSÁRIAS”, retoma suas atividades; Retrospectivas de Entrevistas feitas durante a pandemia, com inserções de INÉDITAS “Entrevistas NECESSÁRIAS”.

O artista que vem dar luz a esse Blog/Site pela primeira vez com seus surpreendentes feitos artísticos – nos dá um apanhado do seu documental/cultural trabalho como operário das artes.

Diretor Teatral, Autor, Professor e Ator – reluzente e de extremo necessário para artes – respeitado pelo seu trabalho de abissal aprofundamento no cenário cultural.

Daniel Herz.

 

 

 

 

 

Entramos na Entrevista NECESSÁRIA com:

DANIEL HERZ.

 

 

 

– Francis Fachetti – Como diretor artístico da respeitada Cia. Teatral Atores de Laura, fale sobre o trabalho da Cia. fazendo um raio x relevante para o público – aclarando para todos essa experimentação/perícia com treino em pesquisas na criação coletiva de textos – onde acaba tendo um desfecho num sentido de lapidar a escrita/narrativa, a criação individual dentro do grupo, a sensibilidade rumo ao palco/cena/plateia… uma busca coletiva chancelando na sua carreira o que eu chamo de êxito em suas “Assinaturas Artísticas”. 

 

– Daniel Herz – A Companhia Atores de Laura foi criada no Rio de Janeiro em 1992. 

Os Atores de Laura tem na sua história a montagem de textos clássicos como As artimanhas de Scapino de Molière, O conto do Inverno, de William Shakespeare,  ensaios de Mulheres de Jean Anouih, entre outros, adaptações de romances com O Filho Eterno e Beatriz, ambos de Cristovão Tezza com adaptação em ambos os casos, de Bruno Lara Resende. Assim como também foram montadas várias peças de autores de integrantes do grupo, como A entrevista e Cartão de Embarque, os dois textos assinados por Bruno Levinson e por mim, peças infantis, espetáculos eventos etc. 

Mas talvez a marca mais singular do grupo seja a experiência de espetáculos, cujos textos são criações coletivas pelos artistas envolvidos no projeto, na maioria das vezes, os atores e o diretor.  

A partir da terceira montagem, Romeu e Isolda, de 1995, surgiu essa prática da escrita coletiva na história dos Atores de Laura. Investidos de um poder de criação mais amplo, fundante para a cena, mas sob um processo coletivo. 

Para escrever textos de criação coletiva, a Companhia desenvolveu ao longo dos seus mais de 30 anos de existência uma dinâmica singular, que envolve num primeiro momento muito estudo sobre um tema ou um autor. Num segundo momento, através de estímulos dados por mim, como diretor, são criadas cenas, diálogos e situações cênicas, e num terceiro momento, a partir de uma estrutura dramatúrgica e de muitos debates sobre todo esse material, chega-se ao texto final. É uma das experiências mais fascinantes que os integrantes dos Atores de Laura compartilham ao longo desses anos. 

Depois, as peças Decote, Adultério, O Enxoval e Absurdo surgiram também como espetáculos cujos texto foram criados nesse formato do coletivo. 

Apesar, de na maioria das vezes, serem os mesmos atores e o mesmo diretor, e ter etapas que se repetem para a feitura do texto, cada processo carrega também inúmeras características singulares que os diferenciam um do outro. 

 Romeu e Isolda, inspirado na pesquisa do artista plástico M.C.Escher, em que uma imagem mixa na outra, numa dramaturgia de encontro de personagens que nunca se viram antes. As cenas se passam em torno da iminência de uma paixão e como ela não se concretiza por diferentes motivos. 

Na sequência, foi feito o espetáculo Decote. Depois de um estudo de toda a obra de Nelson Rodrigues, o texto faz uma recriação do mundo do Nelson, sem ter uma palavra sequer reutilizada do nosso Shakespeare brasileiro.

No Rio de Janeiro nas décadas de 50 e 60. No dia decisivo de mais um Fla x Flu, outros confrontos se desenrolam no dia a dia dos bairros cariocas. Entram em campo o desejo e a moral num jogo que rompe tabus e revelam o que há de sublime no nosso banal cotidiano. São oito esquetes escritos pelo grupo, que fazem uma paródia da obra do festejado escritor e são protagonizados por alguns parentes de seus tipos marcantes: a morta da primeira página, o adúltero arrependido, a irmã envenenadora, o jogador de sinuca que acha que é corno, o jornalista sem alma, a tia que cria o sobrinho, os vizinhos torcedores etc.

Já Adultério é mais uma criação coletiva da Companhia Atores de Laura, inspirada no universo do autor teatral Luigi Pirandello. Nasceu a ideia de trabalhar a questão Pirandelliana a respeito da identidade, dos ciúmes e sobre realidade e ficção, com o mote de uma realidade dentro da outra.  

 Adultério, este tema ancestral, presente nas relações amorosas, é apresentado como metáfora e pano de fundo de uma estrutura dramatúrgica, que é construída por histórias que originam novas tramas, num processo contínuo que se desenvolve ao longo de todo o espetáculo.  

O adultério, portanto, além de tema das narrativas, é uma alusão à própria estrutura dramatúrgica, em que os atores continuamente desconstroem uma realidade cênica para construir outra. A cada momento, o pacto de ilusão que toda plateia estabelece com o artista e sua obra é quebrado. Assim, “Adultério”, mais do que levantar a questão da infidelidade conjugal — trazendo ao palco suas mais variadas nuances e consequências ―, convida à reflexão típica de Pirandello: o que, afinal, é a “realidade” e o que é a “representação”? Existe diferença entre uma e outra? Que fronteira há entre o real e o não real; entre vivência cotidiana e criação artística?  

Em “Adultério”, o espectador é convidado a esta reflexão permanentemente e, eventualmente, é traído pela própria ideia que cria sobre as diferentes realidades que se apresentam umas dentro das outras, numa espécie de espelho em abismo.  

A vontade de compartilhar o paradoxo da incomunicabilidade trouxe o surgimento do próximo texto criado coletivamente, Absurdo. 

Absurdo, estreou em 2012, no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro. 

O absurdo da incomunicabilidade. Quanto mais íntimos somos de alguém, muitas vezes ficamos mais distantes. Quanto mais conhecemos alguém, mais se abre um abismo de desconhecimento. 

Um paradoxo:  Duas casas em uma casa. Um filho de duas famílias. Fora dessas casas, um mundo tão perigoso que quase ninguém mais consegue sair. Separados ou unidos por uma mesma mesa, temos um homem que não suporta sua própria existência e uma mulher aprisionada por obsessões cotidianas.  O casal tenta comemorar 20 anos de casamento. Um outro Homem procura a sua casa perdida há vinte anos.  Enquanto não a encontra, vive há muito tempo com uma outra mulher que não tem objetivo, nunca muda e está sempre diferente. Os dois casais têm o mesmo filho que nunca saiu de casa e quer conhecer o mundo. 

O incrível desafio foi construir um texto onde o que prevalece é a falta de sentido que tangencia a existência humana de uma maneira tão radical quanto a incomunicabilidade e a morte.  

Nesse mundo cada vez mais imediatista, a criação coletiva exige uma nova dinâmica dos integrantes em relação a ideia do término do processo, de estar com o texto logo pronto.

Todas essas etapas citadas acima da feitura do texto levaram, em média, mais de oito meses. É constante a necessidade de fazer uma reflexão sobre como lidar com um tempo dilatado, num planeta em que o tempo está cada vez mais comprimido, compactado. A criação coletiva do texto demanda uma investigação por parte dos atores e da direção, que vai para além da estética do espaço, da movimentação. Existe a estética da palavra. Que música vai surgir com o jogo de palavras. Um jogo entre significado e significante. É o que se fala, mas como que se constrói a música da frase para atingir uma dupla função com essa composição linguística. 

Tudo isso traz muito embate e por isso muitas vezes momentos de tensão. Pequenas bolhas de crise se formam pelo ímpeto da criação, pelo espaço democrático de todos serem autores. E há de se ter uma sabedoria diária de como estourar essas bolhas para que elas não paralisem o processo. 

Mais do que escrever uma peça, se tornou em estudo sobre um modo de pensar o teatro e a existência como artista e cidadão no mundo.

“Adultério”.

        

 

– Francis Fachetti – As disparidades na tv, cinema e teatro; como você (diretor) manuseia, as detalha no seu olhar: vantagens, desvantagens… Quais seriam? Fazendo um paralelo com o que já efetivou nessas linguagens. 

 

– Daniel Herz – Há uma enorme disparidade da autonomia que um diretor tem entre as três linguagens.

Diria que no teatro a autonomia é maior, depois, num nível menor vem o cinema e por último a televisão.

Na televisão encontramos, pela dimensão industrial do veículo, uma estrutura muito hierarquizada. Sempre tem alguém acima de você que tem algo a propor, repor, modificar, cortar. O que é interessante é que isso se dá em qualquer cargo. Mesmo o diretor de núcleo está submetido a alguém acima dele. Esta estrutura não está errada em si, mas também acaba sendo em escala industrial uma fábrica de frustrações. Faz parte do jogo saber disso e ter maturidade para lidar com essa limitação.

Ao mesmo tempo a televisão oferece um mundo de possibilidades tecnológicas que é muito potente. Numa reunião de equipe sempre tem algum profissional de um setor que pode viabilizar alguma ideia do diretor, se esta for absorvida pela linha da hierarquia acima do artista que propõe uma determinada ideia.

O cinema é uma linguagem que venho desenvolvendo nos últimos quatro anos e a autonomia do diretor é muito maior do que na televisão. A negociação dos limites é numa dimensão horizontal. A equipe coloca os limites, a produção coloca o limite financeiro, mas a lógica do “não” é outra. A parceria que desenvolvo com Luis Felipe Sá e Pedro Murad  é fascinante. Temos um olhar dinâmico e generoso sobre cada projeto. Quem vai ser o roteirista, o diretor de cada projeto? Somos um coletivo de três em que temos a generosidade e o bom senso de pensar a cada projeto de como montar a equipe. Por exemplo, no filme, A melhor versão, fizemos um longa em que eu e Felipe dirigimos e o Pedro foi o diretor de arte e o editor. Já dirigi com o Pedro os curtas Só posso ser Charles e As valsas são Breves em que o Felipe não participou. Fizemos dois documentários, um sobre a Escola de Psicanálise Letra Freudiana e outro sobre a Bernardina da Silveira Pinheiro, tradutora de James Joyce. Felipe já fez com o Pedro um clip da dupla Sara e Nina e um outro clip, da mesma dupla, eu fiz com o Felipe. E assim vamos construindo esse coletivo cheio de ideias e projetos. É uma experiência de nítido complemento com o que cada um tem de melhor e ao mesmo tempo cada um vai absorvendo o que o outro traz de conhecimento e experiência.

No aspecto negativo a limitação financeira é o grande contraste com a televisão. No Brasil, por causa dessa limitação financeira, na maioria das vezes, o cinema tem algo de artesanal que encontramos numa dimensão que está na gênese do teatro. O teatro é o espaço da cumplicidade completa entre o diretor e o ator. É possível, e já vivi isso inúmeras vezes, montar um espetáculo só com o diretor e o ator. Mas essa aliança tem que ser forte. Uma transferência, usando um termo psicanalítico, deve acontecer entre o diretor e os atores em mão dupla. Deve existir um desejo de estarem juntos. O ensaio é um espaço de criação em que todos entram num encantamento com o tempo. A limitação que o teatro traz, me fascina, produz uma ginástica criativa em que a poesia da cena é construída a cada segundo. 

Curta Metragem: “Só Posso Ser Charles”.

 

 

 

– Francis Fachetti – Discorra sobre o curta-metragem “SÓ POSSO SER CHARLES” – escreveu e dirigiu – sendo o detentor do prêmio de melhor curta. 

 

 

– Daniel Herz – Só posso ser Charles, é um curta metragem, roteiro meu, do Charles Fricks e do Pedro Murad.

Ganhamos o prêmio de melhor curta experimental no Bugia Film Festival, na Italia. Uma experiência fascinante, que já é mais um capítulo nessa etapa nova da minha vida que é a entrada no mundo áudio visual.

Esse filme é a aventura de um ator que só pode interpretar um único personagem. Um contemporâneo de Narciso. O Outro se tornou um território onde se evita passar. Um ator que disputa, num teste, o único papel que lhe resta: o de si mesmo.  Só Posso Ser Charles é essa experiência radical de exílio de toda individualidade em si mesma. Uma equação impossível e ao mesmo tempo aniquiladora. 

 

 

 

– Francis Fachetti – Quem é Daniel Herz diretor, professor, autor e ator; uma diferença/palavra que defina cada um deles. 

 

– Daniel Herz/Diretor – Apaixonado pelos atores. 

 

– Daniel Herz/Professor – A beleza do treino, do crescimento, da transmissão, do aprendizado que se realimenta no falar e ouvir, no ver e no sentir, dar e receber. 

 

Daniel Herz/Autor – A surpresa de um fluxo desconhecido de mim mesmo. 

 

– Daniel Herz/Ator –  Uma eterna insegurança.

 

 

 

3 – Francis Fachetti – Torne conhecido para todos essas veredas/caminhos, desde 1988, ministrando aulas na sempre agradável e aurífera Casa de Cultura Laura Alvim, descortine esse processo de aprendizagem mútuo. 

 

– Daniel Herz – Entrar num espaço fechado com um grupo de pessoas e estabelecer um pacto de que naquele espaço, por um determinado número de horas, algumas vezes por semana, durante todo o ano, iremos construir um ambiente de treino para que cada um possa se sentir um artista de teatro mais apto para seguir no mundo com seus próprios projetos ou se aventurar num projeto de outra pessoa.

A primeira vez que esse encontro aconteceu sob a minha batuta, tem mais de trinta anos. Estranho pensar nesse número, 30, trinta, 29 +1, como se ele não pudesse conter toda a matemática que o tempo interno dessa experiência traz na sua ampla subjetividade. Parece muitos anos e ao mesmo tempo, cada ano quando começo um novo processo com um novo grupo de alunos tem o frescor da pergunta que se repete a cada novo início: como estabelecer mais uma vez esse pacto? O que é verdadeiramente importante em termos da experiência desses encontros? O que de prático traz embutido uma teoria que deve ser compartilhado? Como começar? Repetir como foi no último ano? Ou algo de novo se torna premente para mudar esse novo começo? 

 

 

 

– Francis Fachetti – De que forma se constrói esse sustentáculo, a égide de um trabalho de repertório aguerrido, sólido, em uma Cia. Teatral? Consequentemente resulta numa formação de atores… Como se desenreda essas relações/dificuldades, num fazer coletivo, criando uma orquestração/repertório de assuntos num arrematar de obras, seleções de textos, acervos que são colocados em cena para o avaliar do público – resumindo – esse efetivar por tantos olhares, ideias, imersões… 

 

– Daniel Herz – O final de uma temporada é lançado a pergunta angustiante e fascinante. Qual vai ser a próxima peça? Qual a próxima aventura cênica? Qual assunto me mobiliza e mobiliza o grupo? Um texto que já existe, uma adaptação ou mais um texto de criação coletiva? Essas são algumas das opções entre outras tantas que nos deparamos no vazio entre um espetáculo e outro.

Importante ter o discernimento entre ser diretor de uma peça e um diretor artístico de uma Companhia de teatro. Muitas vezes as duas funções se juntam, mas é importante sempre estar aberto a perceber que podem não estar juntas. Algum integrante do grupo pode dirigir uma próxima peça ou termos um diretor convidado. Provocar um processo que renove o tesão do grupo de entrar numa sala de ensaio e se aventurar no desconhecido do que está por vir. Até hoje nos Atores de Laura, cada decisão de um novo projeto aconteceu de forma bem natural. Somos todos cumplices das alegrias e tristezas de fazermos parte de um mesmo grupo. Mas sem dúvida, as alegrias prevaleceram. Uma Companhia de teatro é um espaço em que cada um é mentor, criador e mais do que tudo, tem as rédeas da sua própria trajetória artística sem estar à mercê de um teste, de convite de um diretor ou produtor. E assim seguimos nesses mais de trinta anos, descobrindo inúmeras possibilidades de como estarmos juntos em cena. De como pensar em fazer um teatro que nos encante e encante o outro. 

 

 

 

– Francis Fachetti – Disserte, exponha, fale sobre as quatro obras que dirigiu junto a Cia. Atores de Laura: “O Filho Eterno”; “O Pena Carioca”; “Cálculo Ilógico” e “Pedro I”. Classifico a todos como de extremo necessário – Espetáculos NECESSÁRIOS. Espetáculos que resenhei críticas teatrais contidas nesse Blog/Site para quem se interessar a ler. Trabalhos esses que desvelam um Daniel Herz não só como necessário diretor teatral, mas, também, com um bravíssimo trabalho de Diretor de Movimento – uma linha tênue que as pessoas muitas vezes não conseguem alcançar.

 

– Daniel Herz – “O Filho Eterno”: 

O Filho Eterno é uma peça inspirada no livro, com o mesmo nome, do Cristovão Tezza, adaptação teatral do Bruno Lara Resende, e esse é um projeto muito especial na trajetória da Companhia Atores de Laura por várias dimensões.  

A primeira delas é a experiência radical, me parece, numa companhia de teatro com um grupo relativamente grande de atores, absorver a possibilidade de um monólogo. Muito importante ressaltar o acolhimento verdadeiro e colaborativo que todos os integrantes tiveram quando eu propus esse projeto para o grupo. 

A história dessa peça começa, num primeiro momento, quando o Charles Fricks me procurou querendo fazer um monólogo, começamos a fazer uma pesquisa sobre suicídio e um dia o Pablo Sanábio, nosso amigo e ator maravilhoso deu esse livro para o Charles e falou: “Dá uma lida que tem a tua cara”. O Charles e eu adoramos!  Já tínhamos começado um tipo de pesquisa junto com Bruno Lara Resende e não sabia se o Bruno ia querer fazer esse projeto específico. Dei o livro para o Bruno, ele já tinha lido o livro e aceitou adaptar o livro e o fez de forma brilhante. 

A partir daí, surge uma relação de afeto e admiração entre a Companhia e o Cristovão Tezza  e isso vai desdobrar num segundo projeto, de um outro livro do Cristovão Tezza, na verdade uma junção de dois livros. O espetáculo se chamava Beatriz. 

Não é possível falar do projeto do Filho Eterno sem falar no próprio Charles. Um ator de uma versatilidade enorme e uma alma extremamente nobre, muito disponível para as propostas do diretor, muito aberto para experimentar qualquer tipo de desconforto que num primeiro momento um ator possa sentir quando um diretor propõe algo. 

Lembrando que uma proposta de um diretor, sempre num primeiro momento é algo de fora para dentro, é um artificio e aí tem um trabalho de arqueologia interna que os atores devem fazer de transformar aquela proposta numa experiência orgânica para que o público sinta que aquilo sai de uma necessidade da personagem. Esse é o trabalho incrível, brilhante, majestoso que os atores e as atrizes fazem. Pegar algo de fora, um texto de fora, um figurino de fora, uma marcação de fora, um conceito de fora que vem da direção, enfim de toda a equipe e transformar para o público numa experiência como se aquilo tudo que se passa em cena fosse uma necessidade das personagens. 

E isso o Charles faz de uma maneira brilhante. Ele sempre tem uma alegria inicial de experimentar a proposta que vem de fora. Como se tivesse algo de uma aventura perigosa, que o diverte muito. “Será que eu vou conseguir fazer disso um material vivo e orgânico”? E na maioria das vezes ele consegue. Ao mesmo tempo, um ator que tem ideias incríveis, sendo um grande colaborador para a direção também. 

O Filho Eterno é um espetáculo sobre o amor e a diferença. Como aprender a amar   na diferença, superando algum tipo de desejo narcísico de encontrar no outro, no caso um filho, a imagem e semelhança no próprio pai, fazer da experiencia da diferença, uma construção profunda para estabelecer uma verdadeira relação amorosa. 

 

Então, o Filho Eterno é só alegria. Mais de dez anos que estreamos o espetáculo. Sempre descobrimos uma coisa nova quando vamos remontar e eu acho que também é um espetáculo eterno para nós – Para mim, para o Charles, Bruno, Cristovão e para a própria Companhia Atores de Laura. 

 

– Daniel Herz – “O Pena Carioca”: 

Martins Pena, o mais carioca dos cariocas. O primeiro a trazer para o palco a irreverência singular da alma carioca. 

Fazia como ninguém graça e humor, colocando o cotidiano em cena, inaugurando desse modo peculiar o teatro brasileiro de comédia. Suas peças desfilam uma galeria de tipos, personagens e situações nos quais nos reconhecemos. 

Foi sobre nós que ele escreveu há quase dois séculos. 
É com esse espírito que a Companhia Atores de Laura viajou ao século XIX e foi ao encontro das palavras e dos tipos do Pena, refletindo como um espelho em abismo os traços que se perpetuam desde então até o nosso cotidiano atual. 

O desafio que nos instigou foi fazer da cena mais do que uma homenagem ao Martins Pena, homenagem mais do que merecida, diga-se de passagem. O desafio foi fazer uma cena que traz o efeito do encontro dos Atores de Laura com Pena: o cotidiano do Rio com uma atitude não cotidiana em cena, mostrada por uma companhia de teatro carioca. 

 Para atingir este objetivo, utilizamos na encenação a linguagem da tradição do teatro popular, daCommedia Dell’Artee da farsa, que são exatamente as fontes estilísticas às quais Martins Pena recorreu para escrever sua obra.  

A exemplo dos textos de Ariano Suassuna que muitas vezes apresentam uma companhia de teatro falando do texto que vão encenar, e também de outros grupos e textos de tradição popular que fazem  teatro no teatro, uma espécie de metateatro, os Atores de Laura encenaram três peças da obra de Martins Pena  para oferecer à plateia um retrato mais completo deste grande dramaturgo carioca. 

 

 

  – Daniel Herz – Cálculo Ilógico”: 

Um dos fascínios de acordar mais um dia é o mistério que aquele dia vai trazer de único, original, do que não estava nos planos, na agenda. Acordamos e fazemos do ritual da rotina uma moldura que tem um espaço a ser preenchido com o que foi pensado, planejado no dia, semana ou mês anterior. Mas a verdade é que, muitas vezes, o que fascina é o que não estava programado.

A primeira mensagem da Jéssica me procurando fez parte do que viria a ser um dia inesperado. Nunca tinha ouvido falar dessa jovem atriz, tantas atrizes que nunca ouvi falar e que deveria já saber quem são. Queria me encontrar para falar de um “projeto”. Até aí mais parecia parte de uma rotina de um diretor que eventualmente recebe convites para novos espetáculos. Não sabia o que estava por vir. 

Nos encontramos no Teatro Miguel Falabella, que a Companhia Atores de Laura administra. Ela aparece com a Gabriela; naquela altura eu não tinha a mínima ideia do porque ela estava ali junto com a Jessica. 

Começamos uma conversa com uma certa dose de formalidade, como talvez sempre aconteça uma primeira conversa entre artistas que estão se conhecendo para quem sabe, começarem um projeto juntos. 

Jéssica começa a descrever o projeto: um monólogo que era faria como atriz. O texto escrito por ela mesma a partir de uma experiência real que viveu. Até aí não tive nenhum sentimento de entusiasmo. Mais um monólogo? Já tinha dirigido quatro! (O Filho Eterno com Charles Fricks. Valsa número 6 com Rose Lima, Meu Sabá com Clarissa Kahane e Acorda pra cuspir com Marcos Veras. A ideia de mais um monólogo, no primeiro momento, mais me trazia uma sensação de tédio do que alegria. E ainda por cima eu estava ensaiando outra peça. Não quis nem saber as condições de produção do projeto. Já ia agradecer o encontro, explicar a minha falta de tempo e motivação. Mas ali, naquele instante no qual iria se iniciar o desfecho do nosso primeiro e último encontro, uma intuição me sussurrou algo incompreensível, mas que foi suficiente para eu propor que ela fizesse a pequena cena que já existia. Sim, uma pequena esquete de dez minutos que Jéssica tinha feito em um festival de cenas curtas. Ela me olhou espantada e falou: fazer agora? Aqui? Tem certeza? 

Eu respondi que sim. Não tínhamos por que desperdiçar essa possibilidade. Tínhamos tempo, estávamos num teatro, mas acho que a intuição da Jéssica conversou com a minha intuição e também sussurrou para ela que essa era a única chance. Dei dez minutos para que ela trocasse de roupa. 

Entrei na sala de ensaio do Teatro Miguel Falabella e ela estava ali, concentrada. Eu não sabia o que iria acontecer comigo dez minutos depois. 

Ela começou a cena. 

Cada palavra dita por Jéssica me tragava para dentro do palco junto com ela. Olhei para o lado e a minha intuição começou a rir de mim mesmo. Não te disse? Ao longo dos dez minutos fui percebendo que aquele não era um dia qualquer. Que mais uma vez o mistério dos encontros se fazia presente. 

Quando ela acabou eu fiquei alguns segundos em silêncio. Perplexo com o que tinha acabado de assistir, perplexo com a ideia de dirigir mais um monólogo. Isso estava completamente fora dos meus planos! 

Conversamos mais um pouco. Jéssica me disse o quanto queria que eu a dirigisse. Me “ofereceu” a Gabriela como assistente. Que petulância! Não conhecia nenhuma das duas e na frente da Gabriela ela me sugere a assistente! Será que são tão inexperientes que não sabem que a assistente de direção é uma parceria de muita afinidade entre as partes envolvidas? Teve um lado meu que gostou dessa inadequação. Pronto! Já tenho um motivo para não aceitar fazer o projeto! Jéssica me explicou que a Gabriela fez parte da criação da cena de dez minutos que ela tinha acabado de fazer. Vou pensar…e nos despedimos. 

Naquele mesmo dia Jéssica me mandou todo o texto. Vi algo único e original. Mas tinha problemas de evolução. Uma coisa é uma cena de dez minutos, outra é uma peça completa. A dor por si só tem que trazer um “deslocamento” para a personagem. Pronto! Encontrei o terceiro motivo para não fazer o projeto. Mas aí apareceu mais um dos inúmeros encantamentos da Jéssica. A sua abertura, flexibilidade, talento de escutar, debater, ouvir, propor, ouvir de novo e avançar numa parceria. 

Já não podia mais recuar. Estava apaixonado pela ideia de fazer O Cálculo Ilógico. Com dois assistentes de direção, a própria Gabriela que Jessica me propôs e com Tiago Herz, meu assistente em inúmeros projetos, começamos os ensaios. Eu provocava a Jéssica, pedia para ela escrever e reescrever cenas e situações a partir da ideia do “deslocamento” da personagem e ficava fascinado com como ela conseguia trazer um novo material em tão pouco tempo.  

 Nos minutos que antecediam cada ensaio um entusiasmo se instalava em mim. Momentos prazerosos estavam por vir na construção de cada cena com Jessica, atriz estupenda, e os talentosos assistentes Gabriela Checchia e Tiago Herz. Completou-se esse cubo de prazer. Feliz esse encontro que parecia tão impossível de calcular! 

Jéssica Menkel traz no seutextoa gênese da marca real da dor, da tragédia e do desejo. No entanto, por mais contundentes e intensas que sejam as experiências reais, no teatro elas não se sustentam por si só. É no olhar e talento do dramaturgo que estas são elevadas a uma experiência artística que pode e deve ser compartilhada com o público. No encontro com a Jessica vi essa potência plena. A densidade do vivido, somado ao olhar poético transforma suas falas e marcas em pura poesia cênica. O que fazer com a imensa dor que se instala com uma profundidade tão cruel que parece que nunca vai passar? A narrativa, grávida de dor necessita da matemática e daí extrai o desejo.  

Quando começamos um projeto carregamos conosco uma intensa insegurança somada a uma boa dose de masoquismo! Aonde isso vai chegar? O que o mundo vai perceber? Entender? Será que vai se envolver? Depois o prazer dos ensaios, a potência da criação vai camuflando esse masoquismo. Mais adiante ele volta com toda a sua crueldade com a proximidade do dia de abrir o pano. Quando estreamos O Cálculo Ilógico não tínhamos a mínima ideia de como a matemática da encenação e das palavras seria recebida pelo público.

A experiência de como a peça toca as pessoas faz com que hoje eu tenha a certeza mais absoluta, mais exata, de que a minha intuição me sussurrou a coisa certa e fez daquele nosso fascinante primeiro encontro algo de inesperado no meu dia. E isso se estende por toda a temporada até os dias de hoje. 

Momento ensaio – diretor e atriz.

 

 

– Daniel Herz – “Pedro I”: 

Pedro I nasce de um encontro que tinha tudo para dar errado.

O João Campany me procura para dirigir um monólogo sobre a personagem que faz parte da nossa história, Pedro I. Não conhecia o João, não queria mais dirigir monólogos. A lista dos monólogos que vinha dirigindo era imensa: “O Filho Eterno”, “Meu Saba”, “Acorda pra Cuspir”, “A valsa n: 6”, “O Cálculo Ilógico”, “Corcunda”, “Dueto para Ator” e “Catedral Gótica”. Sem dúvida, naquele momento não estava no meu horizonte dirigir mais um monólogo.

O personagem Pedro I, me remetia ao meu período de escola, algo um pouco enfadonho, um certo cheiro de naftalina. Mas enfim, apesar de todas essas adversidades, uma intuição me dizia para “dar linha”. Pedi ao João para entrar nas minhas aulas, na Laura Alvim, para que nos conhecêssemos melhor. Ficava me provocando, como fazer desse tema algo contemporâneo, que fale do momento conturbado e perigoso que estávamos vivendo em 2022. Um governo fascista que colocava em risco todas as conquistas democráticas que o Brasil havia conquistado.

Chamei a Roberta Brisson para participar como assistente de direção e propus para o João escrevermos um texto a seis mãos. Ele topou e lá fomos nós para mais uma aventura de texto de criação coletiva. Propus uma relação entre Pedro I e um ator filho de uma mulher trans. Cada um quer algo do outro. Pedro precisa do ator para tentar chegar em Brasília e reconquistar o poder e o ator “João” precisa que o imperador refaça a declaração da independência incorpore as lutas identitárias.

No final, o ator consegue refazer a declaração e o imperador volta aos escombros do passado e não consegue se tornar mais uma vez imperador. A democracia fica preservada. Muito interessante perceber o contraste de uma desmotivação inicial de me embrenhar por esse tem e a minha total paixão em que me encontrei no final do processo. Até livro o texto se tornou! 

Reflito com essas quatro peças, duas dos Atores de Laura, O filho Eterno e Penna Carioca e duas com artistas fora da Companhia, O Cálculo Ilógico e Pedro I, pontos de interseção no fazer teatral e também suas diferenças. Ressalto aqui a busca de um teatro não cotidiano, seja na dramaturgia, seja na estética da encenação, mas principalmente no ator.

Como trazer seu corpo, seus gestos, um vocabulário que não está no cotidiano banal do dia a dia. Isso talvez seja o que mais me fascina e assim vou me aventurando e ousando em pensar o movimento do ator como um desenho que vai pintando a tela da cena. 

 

Abaixo reporto a Crítica Teatral desse trabalho cênico que tanto me arrebatou. Leiam a Crítica Teatral, vão ficar no mínimo curiosos.

 

LINK DA CRÍTICA DO ESPETÁCULO:  “PEDRO I” 

 

 

Sigo com minha parceria com a Casa de Cultura Laura Alvim onde ofereço o treino em forma de aulas para os atores atrizes. 

Também junto com os Atores de Laura enfrento a maturidade de mais de trinta anos de existência, o que considero um desafio fascinante! 

Junto com Luis Felipe Sá e Pedro Murad avançamos no nosso coletivo de áudio visual com filmes, longas, curtas e documentários. 

Tudo isso dá um sentido delicioso para minha existência!

 

 

 

 

Para terminar essa incrível reflexão/Entrevista/Documental Cultural, abaixo vai o flyer do mais recente trabalho desse diretor que está em cartaz no Sesc Copacabana. Assistam! Informações no flyer.

 

 

 

Simplesmente:

DANIEL HERZ.

 

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