Crítica teatral: “As Crianças”

AMBIVALÊNCIAS CÊNICAS EM ACUIDADE/AGUDEZA DE PERCEPÇÃO, NUM FEITO TEATRAL SINGULAR E EXPRESSIONISTA.

“AS CRIANÇAS” gira em torno de um casal de físicos aposentados, que vive numa região inospitaleira atingida por um acidente nuclear. Após uma ausência de 38 anos, Rose, antiga colega de profissão e amiga, chega à casa onde poderá transmutar à pacata vida do casal, e também no passado teve um caso com Robin, marido de Dayse.

Em cartaz num dos mais agradáveis espaços cênicos carioca, Teatro Poeira, o espetáculo tem dramaturgia da respeitadíssima inglesa LUCY KIRKWOOD.

Direção/encenação do brilhante Rodrigo Portella.
Assistente de direção: Mariah Valeiras.
Tradução preciosa de Diego Teza e um elenco expoente: Analu Prestes, Mário Borges e Stela Freitas.

O espetáculo tem como pano de fundo sólido e bastante relevante um acidente nuclear, finitude da vida sexagenária, um câncer devastador sofrido por Rose, tudo isso, entrelaçando e causando uma cizânia/ discórdia, em tsunamis emocionais, inseguranças desses personagens, com atitudes e propostas cênicas remetendo ao infantil.
Uma contextualização cênica feita pelo texto e direção, extremamente política, social, atual e ambiental. O encontro do íntimo humano com a concussão/ choque social e pessoal.

Um trabalho não realístico, em expressionismo emocional, contrastando com austeridade do cenário coberto por britas/ pedras, dando alusão a castração, vulnerabilidade, fragilidade de três pessoas sexagenárias, em vidas cronológicas e sentimentos findáveis. Uma cena construída com muita pujança/ poder, porém, aparentemente instável, volúvel, escorregadia, manipulada brilhantemente pela desenvoltura vultosa dos atores e a condução da direção.

A dramaturgia de LUCY KIRKWOOD discorre com acuidade/ agudeza de percepção em temas que nos leva a uma imediata identificação em sua atualidade de relevância. Apoiado pela tradução de grande fruição, polida e translúcida de Diego Teza.

LUCY KIRKWOOD nos apresenta sexagenários em conflitos e embates de arrebatamento psicológico imprescindíveis. Uma literatura em obra-prima prima de influência valiosa.

Julia Deccache e Rodrigo Portella nos coloca diante de uma cenografia contrastante com o emocional da escrita, porém, dialogando num distanciamento complementar, numa beleza fria das pedras/ britas, em sons pizantes musicais instigantes, comungando com a emoção que nos toca enquanto espectadores. Referências preciosas em cena ao infantil/ às crianças, em adereços perfeitamente adaptados cenicamente e enaltecendo a proposta; balão, pirulito, cavalinho de pau etc.

A indumentária de Rita Murtinho tem uma harmonia que fortalece desenlace das cenas entrelaçadas. Simples, efetivo e competente.
Preparação corporal assertiva de Marcelo Aquino.

Marcelo H e Frederico Puppi agregam uma trilha sonora condizente.
A aclimatação da inefável/ deliciosa iluminação de Paulo Cesar Medeiros, é de uma beleza extrema. Se explica, ao efetivar, engrandecer à cena no seu todo. Fortalece atores, texto, direção e os olhos do espectador. Os refletores pendurados por cordas é admirável.

Rodrigo Portella em sua direção/ encenação nos presenteia com ambivalências cênicas habilidosas, de comprometimento e perspicácia. Um pródigo e artesanal feito teatral em singular expressionismo. Uma cena alentada/ farta de talentos e inventividade. Comunhão comovente de literatura de KIRKWOOD com vocação de Portella.

O que dizer dos obradores cênicos do calibre e sensibilidade de Analu Prestes, Mário Borges e Stela Freitas?!

Em um texto bélico, bem humorado e confrontante, eles são aguerridos de um talento homogêneo e peculiar, respaldados pela ética, simplicidade e experiência em grandes proporções. Vestem seus personagens com ourivesaria incontestável.

Verdadeiros ourives da cena, do rítmo, voz, corpo, da finitude que para eles parece não chegar nunca. BRAVÍSSIMOS!!!!

O espetáculo “AS CRIANÇAS” nos remete a ingenuidade infantil num explicitar cênico recheado de amargor, reminiscências, doçura, expondo à importância dos temas abordados numa contemporaneidade latente e absurdamente repleta de talentos na convergência de todos os signos cênicos. Um frugal/comedido e necessário trabalho teatral de exortação artística magnânima.

“A arte é um ponto intermediário entre a capacidade de conceituar e a sua concretude.”

Robert Musil
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